3 dias de matança misógina brasileira
Os últimos dias foram difíceis para quem ainda não naturaliza os efeitos violentos da misoginia no Brasil.
Em 28 de novembro, no Rio, um homem assassinou duas mulheres, suas colegas, em seu local de trabalho. Segundo a investigação, as mulheres ocupavam postos de coordenação na equipe da qual o homem havia feito parte.
Ele se suicidou.
Elas foram assassinadas.
Em 29 de novembro, em São Paulo, um homem atropelou uma mulher e a arrastou por mais de 1 km. Segundo a investigação, eles haviam se relacionado e, na noite do crime, ela se encontrava na companhia de outro homem.
Ele foi preso pelo crime de tentativa de feminicídio.
Ela perdeu ambas as pernas e encontra-se hospitalizada em estado grave.
No mesmo dia, em Pernambuco, um homem ateou fogo na casa da família, matando sua companheira e os 4 filhos. Dois dias depois, em 1 de dezembro, também em Pernambuco, outro homem ateou fogo na própria casa em que se encontravam uma mulher e uma criança.
Ainda em 29 de novembro, no Ceará, um homem matou uma mulher com golpes de faca. Segundo as investigações, eles haviam se relacionado e o relacionamento fora encerrado pela vítima, esfaqueada em seu local de trabalho.
Ele foi preso.
Ela foi assassinada.
Em 1 de dezembro, na capital paulista, um outro homem munido de 2 armas de fogo foi até o local de trabalho de uma mulher, ameaçou-a e, finalmente, disparou contra ela. Segundo a investigação, eles haviam se relacionado por aproximadamente 3 anos e a relação fora encerrada quando ele desferiu pelo menos 6 disparos contra ela. Ele fugiu, sua conduta está sob investigação pela Polícia Civil e sua prisão foi determinada por autoridade competente.
Ele é procurado por tentativa de feminicídio.
Ela está internada em Unidade de Tratamento Intensivo.
No mesmo dia 1 de dezembro, em Goiás, um homem assassinou uma mulher com tiros à queima-roupa. Segundo a investigação, eles haviam se relacionado por aproximadamente 15 anos, tiveram um filho, hoje com 12 anos, e não estavam mais juntos. Ela foi morta pelo ex-companheiro dias após requerer a medida protetiva.
Ele se suicidou.
Ela foi assassinada.
Esses crimes foram noticiados individualmente em diversos veículos que comercializam a difusão de informação. A chamada mídia. Não localizamos uma notícia que reunisse as ocorrências e as problematizasse como manifestações de um mesmo fenômeno. Não obstante, é possível que a quantidade e a variedade regional possam ser lidas como uma oportunidade para considerar se não seriam expressões dos valores que, no limite, tornariam a matança de mulheres parte do cotidiano brasileiro. Mulheres foram mortas e/ou gravemente feridas por homens com quem se relacionaram em situações que explicitam que a morte violenta está no horizonte próximo das mulheres, uma possibilidade da qual não estão a salvo em casa, no local de trabalho ou no espaço público. Qualquer lugar é lugar quando o assunto é reagir violentamente à mulher que tem vontade, que se destaca, que frustra, enfim, que “não se comporta como mulher”. A repetição dessas agressões em tão curto intervalo pode sugerir que tais episódios não são isolados. Ao contrário, talvez evidenciem, na radicalidade, a expressão limite de uma dinâmica reiterada de misoginia.
Tomadas em conjunto, essas ocorrências demonstram a força letal de valores segundo os quais a dignidade da existência de uma mulher é condicionada pela vontade de um homem. E essas são apenas as ocorrências de que tivemos notícia. Nelas, as circunstâncias são variadas, mas as motivações, os expedientes e os efeitos de cada ocorrência confluem de maneira tal que é difícil discutir. Noticiá-las isoladamente parece expressar uma dimensão da mesma naturalização que informa o registro da matança de mulheres como homicídio, descuidando da especificidade e, logo, de informar sobre o fenômeno e o problema social adequadamente.
Estamos tratando de feminicídio, a forma mais letal da misoginia (Lei nº 13.104/2015). Não faz muito tempo, a comunidade da UFSC perdeu Catarina Kaste para o mesmo padrão de conduta.
Nós, membros do Grupo de Pesquisa Officina de Política [OPo/UFSC], manifestamos nosso profundo repúdio a qualquer manifestação misógina. Nós de OPo não fazemos distinção e, quando dizemos que repudiamos a violência contra mulheres, não nos referimo apenas às mulheres cis. Fazemos assim justamente porque estamos atentas à diversidade que caracteriza mulheres enquanto um grupo social. Reiteramos: um grupo social, ao qual a violência é dirigida em razão do que diferencia, no registro misógino, homens de mulheres. Cuidamos, nisto, de desprezar a distinção transfóbica. Manifestamo-nos assim enquanto fazemos o luto pela morte de nossa colega e de todas as brasileiras barbarizadas por homens e traídas por uma sociedade que negligencia seu papel moral e histórico.
Repudiamos veemente todo ato de misoginia e manifestamos nossa solidariedade incondicional às vítimas na forma da manutenção de nosso trabalho.
Numa sociedade que se quer civilizada e democrática, a intimidação, o silenciamento e o extermínio podem ser considerados problemas. No Brasil, esses nomes são harmonizados e pronunciados na mesma sentença historicamente, como se não rivalizassem semântica ou concretamente.
O papel do cientista é explicitar o fenômeno, organizar e fornecer os dados, elaborar a interpretação e participar da constituição da linguagem que o torne inteligível. Seguimos com esse trabalho em apoio a todas as mulheres brasileiras. Torcendo para que o resultado de nossos esforços seja mobilizado pelo poder público e sirva de aporte para a tomada de decisões.
Seguimos juntas. E com esperança.


